TRILHA SONORA
Hoje Abílio vai experimentar um
restaurante novo. Não que seja de seu
feitio mudar seus hábitos. Mas a cantina onde almoçara todos os dias nos
últimos dez anos havia fechado as portas. Culpa dessa crise horrorosa que não
perdoa quem vive honestamente. O dono, seu Alcides, até chorou ao lhe contar.
Estava com muitas dívidas, não podia mais continuar. O movimento caiu demais...
Entrou no estabeleciemnto e
parou. Olhou todo o ambiente, à procura uma mesa aprazível para fazer sua
refeição. Mesa essa que seria sua constante durante os próximos anos. Encontrou
uma, próximo ao fundo do lugar, que lhe pareceu agradável. Elegeu-a .
Acomodou-se na cadeira, de frente para o salão, de costas para a parede. Assim
podia observar o movimento. Logo um rapazinho afoito veio trazer-lhe o
cardápio. A casa oferecia pouca variedade à la carte, mas ele estava
interessado apenas no “prato do dia” , que, segundo lhe informou o garoto,
consistia de arroz, feijão, salada e um tipo diferente de carne e de legume a
cada dia. A salada era, quase sempre, de alface e tomate mas, às vezes,
acontecia de ter beterraba, pepino ou cenoura ralada. Estava também incluído no
preço um potinho pequeno de doce caseiro, feito pela esposa do dono, à
escolher: leite, abóbora ou cidra.
Pareceu-lhe satisfatório, embora
o preço fosse um pouco mais elevado do que o do Seu Alcides. Se o tempero fosse
bom, estaria escolhido o lugar para seu almoço diário.
- Bebida?
- perguntou o garçon.
- Não,
obrigado. Líquidos às refeições são desaconselhados pelos médicos.
Enquanto esperava, pensava na
vida solitária que levava aos 44 anos. Há quanto tempo almoçava sozinho? Perdeu
a conta. Desde a morte de seu pai? Faz mais de quinze anos, então... Na janta
comia um lanche, em casa mesmo, assistindo TV. Dormia cedo, depois do Jornal
Nacional. Acordava também cedo e passava uma hora, aproximadamente, cuidando da
higiene pessoal: banho, barba, dentes...Depois saía para o trabalho, com tempo
de passar na padaria do Seu Manoel para um café com leite e um pão com
manteiga. A rotina lhe dava segurança.
Chegou a refeição.
Entre uma garfada e outra,
continuava a pensar na vida. Seus fins de semana eram preenchidos pelos filmes
antigos que gostava de ver. Era apaixonado por cinema. Orgulhava-se de conhecer
tudo sobre os enredos, atores e trilhas sonoras.
Estava neste ponto seus
pensamentos quando seus ouvidos captaram um som familiar. Uma música,
cantarolada em tom abafado, chegava a ele neste momento e ele a
reconheceu: “Cantando na chuva”, tema do
filme do mesmo nome, produzido em 1952 com Gene Kelly e Debbie Reynolds. Quem
estaria relembrando essa maravilha. Ficou ali apreciando a bela voz de soprano
e quase se esqueceu da hora. Teve que sair às pressas para não se atrasar para
o trabalho.
No dia seguinte chegou ao
restaurante no mesmo horário. Sentou-se à mesa no fundo e fez o pedido.
Começava a comer quando novamente a voz feminina começou a cantarolar. Desta
vez era a música cantada por Marilyn Monroe, no filme “Os Homens preferem as
loiras” de 1954. A
moça, provavelmente, não sabia a letra, em inglês, mas a melodia era essa
mesma. Ele já havia assistido ao filme diversas vezes. Quem seria a pessoa por
trás da linda voz? Chamou o garçom e, cautelosamente, tentou matar sua
curiosidade:
- Rapaz,
de onde vem essa música?
_ Ah...
é Adelina, a copeira. Canta o dia inteiro essas músicas horríveis que ninguém
conhece.
Que blasfêmia!! Quis argumentar,
mas resolveu deixar o ignorante prá lá. Percebeu que a cozinha devia estar
atrás da parede em que sua cadeira se encostava. Ficou ali, apreciando a
música, até quase se atrasar novamente.
Terceiro dia no novo restaurante.
Abílio passou a manhã inquieto, ansioso por saber qual seria a música que
ouviria ao almoço. Sentou-se, pediu e aguardou. Logo pode ouvir: “Pretty
woman”, tema de “Uma linda mulher” - com a bela Julia Roberts e Richard Gere,
rodado em 1990.
A tarde, ao ir para casa, passou
na locadora e pegou o filme para rever.
Adelina, com certeza, era
cinéfila como ele. Deitado em sua cama, começou a imaginar como ela seria.
Perecida com Julia Roberts? Ou com Marilyn Monroe? Talvez um pouco de ambas...
Cabelos encaracolados castanhos, mas curtos. Olhos azuis, lábios carnudos (Voz
tão linda só poderias sair de uma boca bem torneada). Rosto oval, maçãs
salientes. Corpo bem feito, mãos pequenas, pés delicados... Sentiu que seu
corpo reagia a esses pensamentos. Deixou a imaginação fluir até adormecer. E em
sonho, ele e ela eram o casal do filme, magnata e prostituta, vivendo uma
história de amor.
Acordou feliz, mais tarde que de
costume. Chegou um pouco atrasado ao escritório, cantarolando o tema da
película vista na véspera, para espanto dos colegas. O calado e pontual Abílio
não parecia o mesmo.
Aguardava impaciente o horário do
almoço. Que novo filme o esperava?
Naquele dia foi “Ghost” , com
Patrick Swayze e Demie Moore. E à noite ele sonhou que era um fantasma
apaixonado por Adelina.
No outro foi “Ama-me com
ternura”, com Elvis Presley, no outro “Viva Las Vegas” com Frank Sinatra. E
todas as noites ele via o filme e sonhava com ela. Adelina, para ele, era
aquela que idealizou no primeiro dia de encantamento. E em seus sonhos, tomavam
sempre o lugar dos protagonistas do enredo do dia.
Aos domingos ela não trabalhava.
E ele passou a não ir almoçar nestes dias. Ficava em casa revendo os filmes da
semana e, às vezes, não comia o dia todo.
Passaram-se os dias, os meses, e
Abílio era feliz nessa rotina, com seu amor idealizado. Julgava-se mesmo casado
com a copeira, tão íntimo sentia-se dela.
Certo dia, terminado seu almoço,
dirigia-se ao caixa. Ouviu então alguém atender o telefone no balcão a sua
frente e dizer:
- Adelina? Só um momento que vou
chamá-la.
E enquanto via o rapaz sumir pela
porta da cozinha, entendeu que o momento chegara.
Seu coração disparou e suas
pernas fraquejaram. Sua musa, finalmente, sairia de detrás da parede para
alcançar seu campo de visão.
Tomou, então, uma firme decisão:
Apressando-se a frente de outro cliente na fila, deixou a conta e uma nota de
cinquenta reais sobre o guichê do caixa. Alcançou a porta da rua, sem esperar
pelo troco. A passadas largas, caminhava em retorno ao escritório, enquanto
justificava para si mesmo:
- Para que vê-la agora? Eu a
encontrarei mais tarde, em meus sonhos. É bobagem vê-la agora...