segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Trilha Sonora

TRILHA SONORA

Hoje Abílio vai experimentar um restaurante novo. Não que seja de seu  feitio mudar seus hábitos. Mas a cantina onde almoçara todos os dias nos últimos dez anos havia fechado as portas. Culpa dessa crise horrorosa que não perdoa quem vive honestamente. O dono, seu Alcides, até chorou ao lhe contar. Estava com muitas dívidas, não podia mais continuar. O movimento caiu demais...
Entrou no estabeleciemnto e parou. Olhou todo o ambiente, à procura uma mesa aprazível para fazer sua refeição. Mesa essa que seria sua constante durante os próximos anos. Encontrou uma, próximo ao fundo do lugar, que lhe pareceu agradável. Elegeu-a . Acomodou-se na cadeira, de frente para o salão, de costas para a parede. Assim podia observar o movimento. Logo um rapazinho afoito veio trazer-lhe o cardápio. A casa oferecia pouca variedade à la carte, mas ele estava interessado apenas no “prato do dia” , que, segundo lhe informou o garoto, consistia de arroz, feijão, salada e um tipo diferente de carne e de legume a cada dia. A salada era, quase sempre, de alface e tomate mas, às vezes, acontecia de ter beterraba, pepino ou cenoura ralada. Estava também incluído no preço um potinho pequeno de doce caseiro, feito pela esposa do dono, à escolher: leite, abóbora ou cidra.
Pareceu-lhe satisfatório, embora o preço fosse um pouco mais elevado do que o do Seu Alcides. Se o tempero fosse bom, estaria escolhido o lugar para seu almoço diário.
-          Bebida? - perguntou o garçon.
-          Não, obrigado. Líquidos às refeições são desaconselhados pelos médicos.
Enquanto esperava, pensava na vida solitária que levava aos 44 anos. Há quanto tempo almoçava sozinho? Perdeu a conta. Desde a morte de seu pai? Faz mais de quinze anos, então... Na janta comia um lanche, em casa mesmo, assistindo TV. Dormia cedo, depois do Jornal Nacional. Acordava também cedo e passava uma hora, aproximadamente, cuidando da higiene pessoal: banho, barba, dentes...Depois saía para o trabalho, com tempo de passar na padaria do Seu Manoel para um café com leite e um pão com manteiga. A rotina lhe dava segurança.
Chegou a refeição.
Entre uma garfada e outra, continuava a pensar na vida. Seus fins de semana eram preenchidos pelos filmes antigos que gostava de ver. Era apaixonado por cinema. Orgulhava-se de conhecer tudo sobre os enredos, atores e trilhas sonoras.
Estava neste ponto seus pensamentos quando seus ouvidos captaram um som familiar. Uma música, cantarolada em tom abafado, chegava a ele neste momento e ele a reconheceu:  “Cantando na chuva”, tema do filme do mesmo nome, produzido em 1952 com Gene Kelly e Debbie Reynolds. Quem estaria relembrando essa maravilha. Ficou ali apreciando a bela voz de soprano e quase se esqueceu da hora. Teve que sair às pressas para não se atrasar para o trabalho.
No dia seguinte chegou ao restaurante no mesmo horário. Sentou-se à mesa no fundo e fez o pedido. Começava a comer quando novamente a voz feminina começou a cantarolar. Desta vez era a música cantada por Marilyn Monroe, no filme “Os Homens preferem as loiras” de 1954. A moça, provavelmente, não sabia a letra, em inglês, mas a melodia era essa mesma. Ele já havia assistido ao filme diversas vezes. Quem seria a pessoa por trás da linda voz? Chamou o garçom e, cautelosamente, tentou matar sua curiosidade:
-          Rapaz, de onde vem essa música?
_          Ah... é Adelina, a copeira. Canta o dia inteiro essas músicas horríveis que ninguém conhece.
Que blasfêmia!! Quis argumentar, mas resolveu deixar o ignorante prá lá. Percebeu que a cozinha devia estar atrás da parede em que sua cadeira se encostava. Ficou ali, apreciando a música, até quase se atrasar novamente.
Terceiro dia no novo restaurante. Abílio passou a manhã inquieto, ansioso por saber qual seria a música que ouviria ao almoço. Sentou-se, pediu e aguardou. Logo pode ouvir: “Pretty woman”, tema de “Uma linda mulher” - com a bela Julia Roberts e Richard Gere, rodado em 1990.
A tarde, ao ir para casa, passou na locadora e pegou o filme para rever.
Adelina, com certeza, era cinéfila como ele. Deitado em sua cama, começou a imaginar como ela seria. Perecida com Julia Roberts? Ou com Marilyn Monroe? Talvez um pouco de ambas... Cabelos encaracolados castanhos, mas curtos. Olhos azuis, lábios carnudos (Voz tão linda só poderias sair de uma boca bem torneada). Rosto oval, maçãs salientes. Corpo bem feito, mãos pequenas, pés delicados... Sentiu que seu corpo reagia a esses pensamentos. Deixou a imaginação fluir até adormecer. E em sonho, ele e ela eram o casal do filme, magnata e prostituta, vivendo uma história de amor.

Acordou feliz, mais tarde que de costume. Chegou um pouco atrasado ao escritório, cantarolando o tema da película vista na véspera, para espanto dos colegas. O calado e pontual Abílio não parecia o mesmo.
Aguardava impaciente o horário do almoço. Que novo filme o esperava?
Naquele dia foi “Ghost” , com Patrick Swayze e Demie Moore. E à noite ele sonhou que era um fantasma apaixonado por Adelina.
No outro foi “Ama-me com ternura”, com Elvis Presley, no outro “Viva Las Vegas” com Frank Sinatra. E todas as noites ele via o filme e sonhava com ela. Adelina, para ele, era aquela que idealizou no primeiro dia de encantamento. E em seus sonhos, tomavam sempre o lugar dos protagonistas do enredo do dia.
Aos domingos ela não trabalhava. E ele passou a não ir almoçar nestes dias. Ficava em casa revendo os filmes da semana e, às vezes, não comia o dia todo.
Passaram-se os dias, os meses, e Abílio era feliz nessa rotina, com seu amor idealizado. Julgava-se mesmo casado com a copeira, tão íntimo sentia-se dela.

Certo dia, terminado seu almoço, dirigia-se ao caixa. Ouviu então alguém atender o telefone no balcão a sua frente e dizer:

- Adelina? Só um momento que vou chamá-la.

E enquanto via o rapaz sumir pela porta da cozinha, entendeu que o momento chegara.
Seu coração disparou e suas pernas fraquejaram. Sua musa, finalmente, sairia de detrás da parede para alcançar seu campo de visão.
Tomou, então, uma firme decisão: Apressando-se a frente de outro cliente na fila, deixou a conta e uma nota de cinquenta reais sobre o guichê do caixa. Alcançou a porta da rua, sem esperar pelo troco. A passadas largas, caminhava em retorno ao escritório, enquanto justificava para si mesmo:

- Para que vê-la agora? Eu a encontrarei mais tarde, em meus sonhos. É bobagem vê-la agora...

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